Feminicídio: pena mais rigorosa pode realmente mudar o cenário da violência no Brasil?
O feminicídio é o assassinato de uma mulher motivado por questões de gênero, em contextos de violência doméstica ou discriminação. No Brasil, o feminicídio foi tipificado pela Lei nº 13.104/2015 como qualificadora do homicídio, mas com a sanção do Projeto de Lei 4.266/23 pelo presidente Lula em outubro deste ano, ele passou a ser um crime autônomo. Com a mudança, a pena mínima para o crime aumentou de 12 para 20 anos de reclusão, enquanto a máxima subiu de 30 para 40 anos.
A Lei 14.994/2024, que partiu do projeto de lei, também cita circunstâncias que foram incorporadas como agravantes, como:
- quando o crime é cometido durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto;
- contra menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, ou mulher com deficiência;
- caso ocorra na presença de pais ou filhos da vítima;
- quando usado veneno, arma de fogo e outros meios considerados cruéis.
Para o advogado criminalista Rafael Paiva, especialista em violência doméstica e professor de Direito Penal, Processo Penal e Lei Maria da Penha, a sanção desse projeto de lei é um avanço significativo. “Não apenas pela questão geográfica dentro do Código Penal, eis que agora o feminicídio é considerado como um crime autônomo, e não uma qualificadora do crime de homicídio, mas principalmente pelo aumento da pena”, disse ao Terra NÓS, no Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres, celebrado nesta segunda-feira, 25.
Esse aumento pode gerar um efeito pedagógico e diminuir o aumento dos casos de feminicídio, na opinião do especialista. “É evidente, porém, que apenas o aumento da pena de um crime não costuma surtir o efeito desejado de diminuição do número de casos. Por isso, é importante que essa mudança legislativa venha acompanhada de campanhas de conscientização e instrumentos legais que realmente garantam que os feminicidas sejam identificados, processados e que realmente cumpram as suas penas”, acrescenta.
Jenifer Moraes, doutoranda e mestre em Direito Penal, compartilha da mesma visão, reconhecendo que só a rigidez das penas não resolve as causas estruturais do feminicídio. “A população, de maneira geral, compartilha uma crença de que apenas o aumento de pena de um delito é capaz de coibir a sua prática, fato que, há tempos, na academia, sabe-se que não necessariamente é verdade, especialmente em condutas que possuem causas heterogêneas, como o feminicídio”, explica à reportagem.
“Se pensarmos no próprio artigo em comento, vemos como essa afirmação é contestável. Antes da alteração legislativa, a qualificadora do feminicídio já previa uma pena máxima de 30 anos de reclusão, que já era alta. Ainda assim, desde a entrada em vigor do dispositivo, em 2015, os indicadores da prática desse delito nunca diminuíram, pelo contrário”, destaca a advogada Jenifer Moraes.
Dados de feminicídios no Brasil
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ao menos 10,6 mil mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil entre 2015 e 2023. No ano passado, foram registrados 1.463 casos, o que representa uma taxa de 1,4 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil, com um aumento de 1,6% em relação a 2022. Esse é o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, de acordo com o levantamento.
Rafael Paiva, por outro lado, acredita que o aumento de notificações está relacionado aos avanços na classificação e reconhecimento do feminicídio. “Aos poucos, as autoridades policiais foram classificando melhor as estatísticas, para considerarem como feminicídio um número maior de homicídios praticados contra mulher. Hoje, essa questão está muito mais madura, e é por isso também que os casos aumentam. Por outro lado, há um aumento de conscientização da população”, conta o advogado ao Terra NÓS.
Medidas preventivas além do aumento de penas
Apesar do aumento da pena ser um avanço importante, tanto Rafael quanto Jenifer destacam que medidas preventivas são essenciais para reduzir o índice de feminicídio no Brasil. Jenifer enfatiza que não existe uma solução única ou um caminho mais fácil, mas que é preciso ir além do direito penal. “Infelizmente, depositamos muita expectativa no sistema de justiça criminal, que atua fundamentalmente após o fato, ou seja, após a violência”, aponta.
Ela sugere que, além da punição, é fundamental fortalecer as delegacias de defesa da mulher e aprimorar os mecanismos de concessão e acompanhamento de medidas protetivas. A advogada também destaca a importância de um debate sobre o assunto. “Nenhuma lei que realmente se proponha a resolver um problema pode ser feita sem um debate com seriedade, experiência prática e diálogo com os próprios atores do sistema de justiça criminal e a sociedade. Esse processo leva tempo, e é normal que assim o seja”, disse à reportagem.
Rafael, por sua vez, acrescenta que é crucial que os agressores sejam punidos rigorosamente e submetidos a programas de recuperação. “A violência doméstica é escalonada. Quase nunca começa com um feminicídio, mas, sim, com uma ameaça, uma ofensa, escala para lesão corporal, violência psicológica, e culmina na morte da vítima”, explica ele.
“Quando o feminicídio acontece, o Estado falhou. A Justiça, a polícia e o Ministério Público falharam, pois não são raras a vezes em que essa mulher pede socorro, mas não é atendida por quem deveria protegê-la”, conclui o especialista em violência doméstica.
Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/feminicidio-pena-mais-rigorosa-pode-realmente-mudar-o-cenario-da-violencia-no-brasil,bb64bd010414cd808b5bf1425437eaban4v5j272.html
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